Após reportagem do Fantástico na semana passada, surgiram novas denúncias contra o grupo religioso, investigado por abuso psicológico e humilhações em internato de São Paulo.
Por Fantástico

Foto: Reprodução
Após a reportagem
feita pelo Fantástico na semana passada, surgiram novas denúncias contra o
grupo religioso Arautos do Evangelho. O primeiro vídeo mostra uma cerimônia de
crisma. Quem celebra o sacramento é o fundador dos arautos, o sacerdote João
Clá. “Recebe, por este sinal, o Espírito Santo em nome de Deus. A paz esteja
contigo”. Depois da benção, ele dá um tapa no rosto dos jovens.

Fundador do Arautos do Evangelho dá tapas em jovens em novo vídeo
O Fantástico
recebeu três vídeos diferentes dessa mesma cerimônia. Foi uma cena dessas que
revoltou essa mãe. Ela ficou indignada quando assistiu ao crisma da filha:
“Quando chegou na
hora da minha filha, que deu um tapa na cara dela eu levantei e falei ‘O que é
que é isso? Que horror! Que absurdo! ’, logo em seguida vem as irmãs e tentaram
me explicar o que é que era aquele tapa. Eu falei eu fui crismada e não tomei
tapa na cara. ‘Não, mas isso é uma celebração, isso está na bíblia...’ e eu
falei "não está". Na saída ainda estava as marcas da mão dele no
rosto dela. “
As duas filhas
adolescentes dela ficaram dois anos morando no internato dos Arautos, na grande
São Paulo.
Um desembargador
esclarece: ainda que faça parte de um ritual religioso, esse tapa é uma
agressão que viola o estatuto da criança e do adolescente.
“Criança e
adolescente não pode ser vítima de situação de humilhação, de castigo, de
violência nada disso. A religião é uma questão de bom senso e não de violência
e sofrimento”, afirma Eduardo Gouvêa, desembargador e coordenador da Vara da
Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de SP.
A mãe conta que já
estranhava o comportamento das filhas -- que se afastaram da família quando
entraram para o grupo. Depois daquele tapa, ela decidiu tirar as meninas de lá.
“Elas se
revoltaram, só choravam. Aí foi aonde eu procurei ajuda psiquiátrica. ”, conta
a mãe.
As adolescentes
fizeram tratamento durante dois anos.
“A psiquiatra a
primeira vez ela falou "bom eu vou falar o que vai acontecer com suas
filhas a partir de agora é como se tivesse tirado dois drogados da cracolândia.
Elas estão viciadas naquilo. As cabeças delas estão doente. ”
Domingo passado, o
Fantástico mostrou que o Ministério Público de São Paulo investiga a
organização católica por denúncias de alienação parental, abuso sexual, racismo
e maus tratos. Esta semana, foi criado um grupo com oito promotores para
ampliar a investigação.
“Daqui para a
frente nós estamos colhendo provas, se a população tiver algum indício, alguma
prova que envolva esse grupo religioso q procure o promotor de Justiça da sua
comarca”, Mário Luiz Sarrubbo, Subprocurador-Geral de Políticas Criminais.
O Conselho Estadual
de Direitos Humanos de São Paulo, que acompanha o caso desde junho, recebeu dez
novas denúncias depois da reportagem.
“O Condepe reuniu
uma série de provas e testemunhos, depoimentos que atestam a existência de
muitos e graves crimes praticados pelos arautos do evangelho”, explica Dimitri
Sales, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos.
Um ex-arauto
entrevistado pelo Fantástico diz que sofreu vários castigos quando morou num
colégio do grupo. Ele tinha 13 anos.
"Eu era muito
punido por não gostar de querer rezar o tempo todo”
Ele conta que,
junto com um colega, chegou a ser obrigado a dormir no chão, no inverno:
“Estava muito
gelado o chão e acredito que foi por causa disso que a gente pegou pneumonia. ”
Os Arautos do
Evangelho surgiram em 1999.a organização diz que tem 15 colégios no Brasil, com
cerca de setecentos alunos. Em 2001, os Arautos foram reconhecidos pelo
vaticano como associação religiosa. Eles costumam fazer visitas em escolas
públicas e em catequeses de igrejas para convidar os jovens a fazer parte do
grupo.
A Diocese de
Ituiutaba, no interior de Minas Gerais, divulgou um comunicado em que diz que
"não recomenda a adesão dos fiéis católicos" aos arautos. E diz que
os arautos não têm a autorização da diocese para atividade religiosa na cidade
"agem de má fé, induzindo as pessoas de boa fé, ao engano e à
dúvida".
Um ex-interno, que
falou ao Fantástico, fez parte do grupo por 14 anos.Ele contou que aos 17 anos
foi convencido a abandonar o colégio e ir para a rua arrecadar dinheiro pros
arautos:
“A gente usava de
uma extorsão praticamente né. A gente ia lá com valores pré-estabelecidos para
pedir. A gente forçava a pessoa doar né existe várias táticas. Onde que a gente
pudesse colocar uma dor na consciência da pessoa que tivesse doando, dizendo
para a pessoa que certamente você tá precisando de alguma graça. Deus está
esperando você dar essa doação pra que você consiga essa graça. ”
Em uma gravação,
que segundo ex-arautos é do fundador do grupo, João Clá, orienta os
arrecadadores:
“Nossa senhora quer
de cada um o que? Que conquiste dinheiro, que faça um apostolado. Quanto mais
melhor. Os senhores estão mais do que conquistando dinheiro, os senhores
estarão atingindo méritos pessoais. A partir do momento que coletou donativos,
liga-se algo no céu imediatamente. E aquele vai receber graça da coleta de
donativo”
Um ex-arauto afirma
que ficou doente com a prática:
“Eu fiquei com
depressão né. Havia uma competitividade muito grande, muito acirrada entre os
coletores de doação, né? Semanalmente nós recebemos uma gravação desses padres
que eles humilhavam aqueles que não tinha um bom resultado”
O Fantástico teve
acesso com exclusividade a novos trechos de vídeos de reuniões internas dos
Arautos. Neles são apresentados depoimentos de sessões de exorcismo ao
fundador, João Clá. Essas imagens foram enviadas para o Vaticano, que
determinou uma intervenção no grupo religioso. No vídeo, um padre relata um
exorcismo -- e o nome do Papa Francisco, Jorge Bergoglio, é citado. João Clá
está sentado na sala. Há mais de dez anos, ele sofreu um AVC e fala com
dificuldade.
Em um dos vídeos,
um padre fala para João Clá e uma plateia:
“À tarde no
exorcismo da outra pessoa, da segunda foi perguntado ao demônio se o Bergoglio
ia morrer, quando ele ia morrer?
Ele disse: "Vai morrer, está chegando".
- E quando vai ser?
Ele disse: "isso eu não posso falar, mas vai ser uma morte horrível.
E aí foi dito então vamos rezar (inaudível) vamos dar três maldições em nome do
monsenhor João pra que apresse a morte dele. ”
O Fantástico
procurou a direção dos Arautos do Evangelho para ouvir o que tem a dizer sobre
as novas denúncias. Eles marcaram a entrevista numa igreja, dentro do castelo
do grupo, em Caieiras, na Grande São Paulo.O Fantástico foi recebido ontem à
tarde em uma igreja com fiéis, dentro do castelo em Caieiras, na Grande São
Paulo.
Quando o Fantástico
chegou lá, o representante dos Arautos, padre Alex Brito, não quis ouvir os
questionamentos do Fantástico e exigiu que a gente gravasse com irmãs que não
foram citadas nesta reportagem e não são objeto de nenhuma das novas denúncias.
Por esse motivo não foram ouvidas também para não expô-las. A produção insistiu
por mais de dez minutos, mas o padre Alex, representante dos Arautos, não
gravou entrevista. Na saída, a equipe foi hostilizada e xingada.
“Lixo!!! Fora daqui
seu lixo!!!”
Um homem chegou a
dar um soco no carro da reportagem. Na entrevista que foi ar no Fantástico no
domingo passado, o padre Alex disse que as denúncias são fruto de perseguição.
“Nós estamos diante
de uma situação, de uma campanha de difamação feita por desafetos da
instituição, desafetos da igreja em geral, uma perseguição religiosa onde a
igreja católica está em foco e a instituição em particular”
A mãe que tirou as
filhas da escola agora ajuda outras famílias:
“A gente quer
salvar aquelas crianças”
“Eles nos faziam
pensar que éramos maus por natureza. E que nós tínhamos que renunciar às
famílias e nos entregar nas mãos deles”, desabafa um ex-arauto.
Hoje cedo, o
Fantástico voltou a entrar em contato com o padre Alex Brito, e pediu novamente
um posicionamento dos Arautos do Evangelho sobre as denúncias reveladas nesta
reportagem. O padre disse que as irmãs que não tinham sido entrevistadas no dia
anterior falariam oficialmente pela instituição.
O Fantástico se
dispôs a ouvi-las e ofereceu várias opções para que a entrevista fosse
realizada, garantindo ampla oportunidade de defesa. Mas, por questão de
segurança, e diante do risco à integridade física da nossa equipe, explicamos
que a nova gravação não poderia ser feita na basílica dos arautos, em caieiras.
Os Arautos do
Evangelho decidiram, por fim, mandar uma nota, em que que se limitaram a atacar
a TV Globo, acusando a emissora de intolerância religiosa. E não se
pronunciaram sobre as acusações apresentadas nesta reportagem. A TV Globo
reitera que respeita todas as religiões e que apenas cumpriu o seu dever de
informar sobre as denúncias que existem contra os arautos do evangelho.
Os inimigos do papa
Quem são os Arautos do Evangelho, organização católica formada a partir da TFP e liderada por um religioso que promove cultos à revelia do Vaticano e afirma que Francisco serve ao demônio

GUIA Monsenhor João Clá, 77 anos, fundador dos Arautos do Evangelho: líder religioso renunciou ao cargo após escândalo (Crédito: Divulgação)
Débora Crivellaro / Isto É
Reportagem exibida em 23/06/17
Em uma sala, trajados com túnica medieval bege, ornada com desenho de uma grande cruz vermelha de cano longo e portando um rosário na cintura, vários homens ouvem atentamente a um senhor muito idoso, que fala com dificuldade, sentado numa cadeira de espaldar alto.
Ele faz intervenções à leitura de outro homem, que está em pé, à sua direita, e recita dezenas de folhas, cujo conteúdo seria uma sessão de exorcismo. A seguir, algumas “declarações” dadas pelo demônio, por meio da voz da pessoa possuída, por intervenção de um sacerdote:“Dr. Plínio (Corrêa de Oliveira, fundador da Tradição, Família e Propriedade e morto em 1995) está sentado à esquerda da Virgem… Ele tem o controle sobre o mundo porque ele é a ordem do Universo…Dr. Plinio esmaga a minha cabeça: eu morro de inveja dele… Ele faz com que os trabalhos do monsenhor (João Clá, fundador dos Arautos do Evangelho) dêem certo…” A leitura da sessão de exorcismo continua, com intervenções do monsenhor João (o idoso que lidera a reunião), muitas gargalhadas, questionamentos e observações.
Em dado momento, o diabo anuncia que a América do Norte irá desaparecer, por meio da ação de um meteorito. O sacerdote exorcista pergunta: “E a Europa, será atingida? E o Vaticano?” No que vem a revelação, seguida de interjeições de espanto: “O Vaticano já é meu, a cabeça do Vaticano é minha. Ele (o papa) é um estúpido, me obedece em tudo e ama a glória. Ele é uma alma estúpida, que me serve…” Um dos presentes ao encontro ainda questiona se esse “demônio” é capaz de entrar no Vaticano, ao que o monsenhor responde, imediatamente: “Ele é o demônio mais capaz que já existiu entre nós, pois está sendo obrigado a dizer.”
A leitura, em voz alta, e algo teatralizada, continua. “…Dr. Plinio está incentivando a morte do papa”, afirma o demônio. “Mas não vou deixar que ele morra…” O diabo anuncia, também, que Francisco irá morrer dentro do Vaticano, ao escorregar e bater a cabeça. E que seu sucessor não será “subordinado” a ele. Revela, inclusive o nome: o esloveno Frank Rodé, que já declarou que o pontífice argentino é muito “de esquerda”.
A reunião que descreveu a sessão de exorcismo durou mais de duas horas e foi gravada em vídeo. Ela aconteceu no início do ano passado, mas só foi divulgada há duas semanas, por meio do vaticanista italiano Andrea Tornieli, do blog “Vatican Insider”, pertencente ao jornal “La Stampa”.
A veiculação já causou estragos. Monsenhor João, antes intocável, divulgou sua saída do comando do grupo, que está presente em dezenas de países, mas cuja sede é no Brasil. E a Santa Sé designou o cardeal brasileiro João Braz de Aviz, atual prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, para investigar os Arautos, que, pasmem, são uma sociedade de vida apostólica. Reconhecida oficialmente pelo Vaticano. Eles também são suspeito de promover culto a Plínio Correa de Oliveira, sua mãe, Dona Lucilia, e ao próprio monsenhor João.

APURAÇÃO Acima, papa Francisco, que designou um cardeal brasileiro para investigar sociedade (Crédito:Divulgação)
A Sociedade Clerical de Vida Apostólica Vergo Flos Carmeli, mais conhecida como os “Arautos do Evangelho”, é uma dissidência da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada pelo advogado Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995) em 1960.
Ela foi criada pelo monsenhor João Scornamiglio Clá Dias, secretário particular de Corrêa, quatro anos após a sua morte, como resultado de brigas com os fundadores da TFP. Ao contrário da primeira organização, que tinha um perfil ultra-direita, mas uma agenda mais política, que costumava lutar contra o comunismo, o aborto e o divórcio, entre outros temas, os Arautos se tornaram uma sociedade mais voltada a assuntos religiosos.
Tanto que tinham como líder um monsenhor. E postularam o reconhecimento do Vaticano, no pontificado de João Paulo II (1920-2005) para avalizar sua identidade. Esse mesmo grupo decretou que o papa Francisco está possuído pelo demônio.
Que a ala conservadora franze a testa para o argentino Bergoglio já se sabe há muito tempo. Mas uma coisa é uma indisposição intelectual. Outra é o que se viu no vídeo da sociedade liderada por monsenhor João. O desconforto é tanto que há um pacto de silêncio entre os católicos. Procuradas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Nunciatura Apostólica se recusaram a dar declarações sobre o tema. “Esse caso é confuso, não está claro nem de um lado, nem de outro. Falta bastante conhecimento de fato”, diz um teólogo que prefere não se identificar.

DEVOÇÃO O advogado Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP e maior inspiração dos Arautos (Crédito:Juan Esteves/Folhapress)
O golpe logo foi sentido na sede dos Arautos, em São Paulo. O superior geral monsenhor João Clá resolveu renunciar ao cargo na sexta-feira 2 de junho, mas anunciou a decisão na segunda-feira 12. A alegação é que, ao chegar aos 77 anos, lhe pareceu justo deixar sua função, a fim de que um filho seu (um padre da instituição) “possa conduzir a Obra à perfeição desejada por Nossa Senhora”. Após a saída de seu líder, os Arautos divulgaram uma nota desmentindo as informações divulgadas pelo italiano Andrea Tornieli e desqualificando o vaticanista, um dos mais prestigiados do mundo.
Os soldados de Cristo
Sociedade Clerical de Vida Apostólica Vergo Flos Carmeli: Arautos do Evangelho
Fundador: Monsenhor João Scornamiglo Clá Dias
Fundada: oficialmente em 2001, com a aprovação do papa João Paulo II
Elevada à sociedade de vida apostólica em 2009, por Bento XVI
Está presente em: 78 países
Tem: 200 sacerdotes
Composta: de 2820 homens e 1260 mulheres, além de 50.557 famílias e membros solidários
Os arautos usam uniforme de estilo militar medieval, túnica bege, ornada com desenho de uma grande cruz de cano longo e um rosário na cintura
Veja outra matéria relacionada ao tema publicada pela Revista Isto É neste ano
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OS ARAUTOS DO ANTICRISTO
Uma série de
denúncias de pais e ex-integrantes, apoiadas em vídeos que mostram cerimônias
agressivas envolvendo meninas, colocam em xeque as práticas dos Arautos do
Evangelho, organização ultraconservadora católica também suspeita de corrupção

VÍTIMA Flávia
Nascimento tirou S. do internato assim que descobriu uma série de abusos
(Crédito: GABRIEL REIS)
André Vargas,
Guilherme Novelli e Giulio Ferrari
Atualizado em
21/09/19

TÚNICAS As vestes
remetem à Idade Média e a disciplina é militar. Pregam que em um futuro próximo
o cristianismo passará por um grande desafio. Depois do “bagarre”, o “Reino de
Maria” (Crédito:Divulgação)
Em nome da fé, a
seita ultraconservadora católica Arautos do Evangelho corrompe, agride,
humilha, assedia e abusa de votos — em especial meninas adolescentes —,
enquanto arrecada dinheiro e dissemina a ideia de que o apocalipse cristão está
para chegar. Há até denúncias de estupro. Aos poucos, essas queixas ganham o
conhecimento da opinião pública, da Justiça e das autoridades eclesiásticas,
rompendo uma rede de silêncio que dura mais de 20 anos e atinge 78 países, em
especial no Brasil. Nos Estados Unidos, o FBI já recebeu queixas e uma
investigação está para ser iniciada — IstoÉ entrou em contato com o agente
federal encarregado.
Nascida de uma
cisão da também ultraconservadora denominação religiosa brasileira Tradição
Família e Propriedade (TFP), os Arautos do Evangelho surgiram em 1997,
assumindo um caráter mais religioso e menos político que seus antecessores.
Enquanto a TFP levanta bandeiras contra temas espinhosos da vida contemporânea,
como aborto, feminismo, reforma agrária, socialismo, minorias, cidadania LGBTQ
e multiculturalismo, os Arautos são uma espécie de TFPdoB, voltados para uma
visão de mundo limitada pelo conceito do que chamam de “Reino de Maria”, que
surgiria após um período de grande instabilidade chamado de “bagarre” (do
francês, luta ou caos), anunciado nas aparições de Fátima, em Portugal, em
1917. Ou seja, enquanto o mundo avança, eles se preparam para viver em comunhão
com Deus em uma existência que misturaria as sequências de “Mad Max” e de
“Senhor dos Anéis”. Para tanto, instalam seus devotos em “castelos”, grandes
prédios que imitam palácios de estilo gótico que servem de moradia e madrassal
cristão — quatro deles nos arredores de São Paulo, abrigando 500 alunos.
Existem escolas em 16 países.
Ora, qualquer um
pode acreditar no que quiser. É uma questão de fé – e ela deve ser respeitada.
O problema são as acusações de crimes perpetrados nos “castelos”, enquanto o
fim prometido não chega. Em 2017, um grupo de 50 mães de vítimas dos Arautos
denunciou o grupo ao Ministério Público de São Paulo e ao Vaticano. A
investigação secular segue em segredo de Justiça, assim como a religiosa. Mas
novos casos apareceram. Em uma das denúncias, o fundador, monsenhor João Clá
Dias, de 80 anos, é acusado de abuso sexual por uma ex-integrante. Órfã de mãe,
uma jovem canadense, hoje com 27 anos, veio ao Brasil estudar com os Arautos.
Ela relata em carta que, quando tinha 12 anos, foi abusada por João Clá, que
tocou seus seios e nádegas e a beijou. Em 2014, aos 22 anos, ela conseguiu se
afastar da congregação. Sua irmã mais velha, que era sua tutora, permaneceu. Sua
denúncia está registrada. Dos 46 relatos entregues aos MPs e secretaria
estaduais de educação, quatro são de abuso sexual. Os outros envolvem
maus-tratos, alienação parental e abuso psicológico. Houve até um registro de
suicídio. Em julho de 2016, Lívia Uchida, de 27 anos, teria se jogado de uma
janela do quarto andar do convento Monte Carmelo, em Caieiras.

CONTROLE ”Eles me usaram e
me chutaram. Só querem controlar as pessoas”, diz Alex Ribeiro (Crédito:GABRIEL
REIS)
Vídeos obtidos por
IstoÉ mostram o monsenhor Clá agredindo meninas com tapas. Em um deles, uma
adolescente mantida segura pelos braços enquanto é filmada por adultos, diz:
“Eu tenho que sair”. São cenas de pura humilhação. Ela é forçada a fazer votos
de obediência, castidade e pobreza. Em outro vídeo, uma menina é forçada a beijar
os pés do religioso. São os “ósculos sacrais”, beijos sagrados dados no líder
como forma da vítima obter uma graça, seja lá o que isso quiser dizer. Na lei
escrita para uma sociedade laica e plural, isso é crime.
Sem absorventes
Em Carapicuíba, na
Grande São Paulo, a dona de casa Flávia Silva Nascimento, de 42 anos, penou
para resgatar sua filha S., hoje com 17 anos. Procurados por pregadores dos
Arautos que visitavam a Paróquia São Lucas, a família, que é católica
praticante, viu a oportunidade de colocar a filha em uma boa escola religiosa.
Não foi o que ocorreu. Aos 12 anos, S. passou por uma lavagem cerebral. Em vez
de estudar, ela tinha que rezar e decorar os textos de João Clá e Plínio Côrrea
de Oliveira (1908-1995), fundador da TFP. Vivendo sob uma disciplina rígida,
inspirada em normas militares, ela não tinha sequer acesso direto a absorventes
íntimos. Ela e suas colegas não tiveram noções de saúde e orientação sexual. Em
vez disso, foram obrigadas a fazer seus “votos” como se fossem religiosas adultas
e responsáveis por si. Durante as férias da família na praia, a adolescente se
recusou a tirar a túnica dos Arautos. Só pisou na areia no último dia. Ela
estava de botas.
Alérgica e com
crises de asma, a saúde de S. se deteriorou. O alerta foi dado pela médica com
quem a família costumava se consultar. A mãe resolveu resgatar a filha, mesmo
contra a sua vontade inicialmente, após assistir um vídeo em que João Clá
aparece como se estivesse praticando um exorcismo em uma garota que é segura
pelos braços. A menina parece assustada e é estapeada pelo religioso. “A
família entrou em crise”, conta a mãe, ao lembrar do processo de retirada da
filha do jugo dos Arautos. S. fugiu de casa duas vezes. Até que aos poucos
entendeu que a vida era melhor do lado de fora. Antes com boas notas, percebeu
que havia ficado para trás, pois não havia aprendido química, física, biologia,
história. Mesmo assim, ela veste roupas mais conservadoras que a mãe e conserva
alguns cacoetes disciplinares. S. relata que a adoração a João Clã atinge
níveis extremos. Ela e suas colegas ingeriram água que, afirmaram seus
superiores, teria sido deixada numa bacia após o monsenhor se enxaguar. “Tive
problemas emocionais, cheguei perturbada, mas hoje estou melhor. Os Arautos
falam que a gente tem que sofrer. Não acredito mais nisso”, diz.
“Tive problemas
emocionais. Os Arautos falam que a gente tem que sofrer” S., de 17
anos, que voltou para casa após 3 anos de internato, onde adoeceu
Há também o brutal
caso de um fiel que foi drogado e internado em uma clínica psiquiátrica sem
autorização da família. Morador da cidade paulista de São Carlos, Alex Ribeiro
de Lima, hoje com 39 anos, contou em vídeo sua desgraça. Ele tinha 15 anos
quando ingressou na TFP, mudando para os Arautos logo depois, onde atuou como
leigo. Já adulto, sua função era levantar fundos, missão que o levou para
Portugal e Itália. Eficiente no trabalho, beijou os pés do monsenhor e
participou de uma cerimônia de “sagrada escravidão”. Sua vida ruiu após 18 anos
de submissões. Aos 32 anos ele foi internado à força em uma clínica para
drogados em Jundiaí (SP), depois de uma crise de ansiedade. Alex mal se lembra
do período, pois ficou sob forte medicação, sem que sua família tivesse
conhecimento. Só teve alta depois que sua irmã descobriu tudo e ameaçou chamar
a polícia. “Fiquei amarrado e tive muito medo. Eu dizia que não era louco”,
conta. Alex chora e pede desculpas quando relata seu calvário pessoal, que
terminou em abandono. “Eles me usaram e me chutaram. Só querem controlar as
pessoas”, diz.
Diante de tantas barbaridades, outros crimes também aparecem. Ex-integrantes
afirmam ter visto armas de fogo em alguns castelos. Seriam revólveres, pistolas
e até escopetas. A relação dos artefatos com a atividade religiosa não está
esclarecida. Tampouco se sabe da origem das armas. O ex-arauto Daniel Del Rio,
de 46 anos, conta que houve também contrabando e evasão de divisas. Dinheiro de
doações entraria no Brasil oculto nas roupas dos arautos na volta de
apresentações da orquestra e viagens de arrecadação. O dinheiro serviria para
apressar as licenças de construção e ampliação dos mosteiros, além de agrados monetários
para autoridades civis e religiosas. Ex-TFP, Del Rio foi dos Arautos por seis
anos e saiu em 2002. “Quero derrubar essa organização”, diz em áudio enviado da
Espanha, onde voltou a viver.
Culpa da vítima?
Em meio à apuração
da reportagem, houve uma tentativa de censura prévia. Advogados da entidade
entraram com um “pedido de tutela antecipada” para impedir qualquer publicação
sem ouvi-los — o que foi negado pela Justiça. Procurados por ISTOÉ, a entidade
só se manifestou por meio de seus representantes legais e por escrito.
Sobre as acusações
de maus-tratos, exigem provas e respondem com retaliações legais. Os vídeos
estão aí. Eles argumentam que ninguém foi agredido e que as imagens foram
captadas de “maneira ilícita” e em “contexto da piedade privada, no âmbito das
imemoriais práticas litúrgicas da igreja Católica”. Também dizem que as alunas
pediram por tal procedimento, Ou seja, jogaram a responsabilidade para as
vítimas. A argumentação dos advogados poderia até ser usada por radicais
muçulmanos para justificar o apedrejamento de mulheres até a morte. Quando
perguntados sobre eventuais punições aos envolvidos, alegam que “a autoridade
competente para avaliar esse tema é a eclesiástica”. Consideram-se vítimas de
perseguição religiosa de uma minoria de descontentes. Puro cinismo. Bater em
criança é crime no Brasil, assim como abusar sexualmente, mal-tratar e impedir
o convívio delas com os pais. O dia que os Arautos se purificarem das máculas
de seus integrantes, o que sobrar será mero conservadorismo.
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